Ela suspirou fundo. Os olhos mais distantes e profundos. Um agasalho surrado, escuro. Dos sete botões que restavam, cinco ainda funcionavam.
Estava frio e usava por debaixo mais duas camisas. Uma calça jeans desbotada e um sapato tipo de bailarina feito de náilon e cheio de furos pequenos que faziam os pés congelarem. Parecia firme de uma delicadeza doída. Soprou entre os dedos como alguém faz antes de jogar um dado, um sopro de boa sorte. Quando o avistou, rapaz sério e contemplativo, como se percorresse a neve na encosta da calçada sem motivo aparente, corou. E se não fosse o olhar gentil de Richard sobre a pele rosada, os lábios secos mais finos que os gravetos ali encostados, o cabelo arrumado levemente elegante, como as mulheres que prezam a vida na sua mais inconsequente forma. Se não fosse o olhar sereno investido, que tanto a incomodava.
Tinha vinte e quatro anos, era sorridente e calejada, como se tomasse o brilho das coisas e não soubesse brilhar sem elas. Pôs os olhos no chão, prendendo-os ali e observa a sombra do moço se emoldurar na parede, crescendo entre picos íntimos de pura e caprichada comoção. Ele sorri, e ela compartilha do entusiasmo. Algo o surpreendente, pensa. Quase sentiu o ar esmurrar suas narinas e sair desprendidas e desdenhosas a perambular sua nuca. Ouviu o soluço assentir o rosto, pondo-o tímido de lado a chutar as gotas que caíam repentinas.
Ele estava lá, os olhos pesados e vermelhos, um cansaço descomunal depositava nos gestos. Sorriu pela segunda vez, afastando o cigarro ainda aceso que gotejava cinzas sobre a neve. Jogou-o no chão e amassou com a ponta do tênis. Um mau hábito, ele murmurou. O rosto aflorou a covinhas no canto da boca, e um mecha teimosa depreendeu-se do cabelo como criança que se perde dos pais.
Olhou-o por cima, notara que não conseguia ficar ao lado daquele homem. Não conseguia olhá-lo nos olhos, era maior que ela. Seu corpo paralisava com aquele sorriso, com o rosto sempre surpreso. Parecia uma árvore rara, daquelas que recebem pouca luz e pouco cultivo, mas se tornam frutíferas por teimosia.
O prazer da vida modesta o fizera perseguir o sonho do pai, ele diria. Quando deitava em cima do pai, ainda pequeno, encostava a ponta do nariz em seu queixo e tentava sem sucesso fazê-lo gargalhar. Sentia um alivio. Um sentimento raro, que não é gratuito. Sentia-se pequeno demais naquele momento, como se nada e ninguém pudesse lhe tocar. Livre de julgamentos precipitados. Seu pai, que lhe ensinara todas as coisas do mundo, era um homem de visão, mas se tornara cego. O ódio lhe impregnava a alma e escurecia os olhos.
Sofia tinha cachos em cima da nuca, o nariz arrebitado. Usava também dois brincos azuis, e perfume doce abafado. Quando entrava na pequena saleta, os pés descalços balançavam na quina da cama. Gostava de observar os pássaros pela janela, silenciosos, pulando de galho em galho, afoitos. Se não quisessem ficar, logo saiam. Queria a liberdade das asas, a fragilidade do ninho. Queria abrir os braços e desaparecer. Ouvir um galho quebrar e desaparecer.
Trajava também, nos lábios tão assimétricos, pouca quietude. Os ombros largos e morenos, as sardas escuras. Sua vontade era abrir os braços e se espalhar na tenacidade daquele moço. E gostava de sonhar acordada e de todas flores e de cada sorriso. E quanto o amava! E como era bom o seu dizer sobre os assuntos sérios da vida, e o seu gargalhar sobre as amenidades de fim de tarde. Como era corajoso, ela pensava. Quão nobre um cavalheiro precisa ser antes de empunhar uma espada? Pois bem! - pensava - homens como aquele não precisavam de títulos de nobreza. Um sobressalto lhe roubara todo o tempo na cumplicidade dos seus pensamentos tão lúcidos.
Ele sorriu uma terceira vez, tentando domar os olhares afetuosos. Desceu pela encosta, os dedos tremidos, ajeitou o cabelo rebelde. Lágrimas lhe tiravam o sono. Tristeza era algo abominável. Sorrisos ele distribuía, e tinha profunda admiração pelo que fazia. Um coração mole crescera ali, sem mais nem menos. E como suspiros lhe faziam impotente, da mesma forma que atenção o fazia requisitado.
Richard não escondia de ninguém a idade. Quarenta e sete anos, uns quilos indesejáveis, rugas que lhe concediam certa bagagem sobre a vida. Era assexuado, costumava pensar. Mas o pensamento foi confrontado e, com o tempo, confortado. Esses impulsos foram saindo subitamente como se quisessem aceitar suas próprias, porém escondidas, verdades. Verdades que, felizmente, surgiram diante de um homem que compreendia as suas limitações. Mas herdara a boa visão do pai, e não demorou muito para se reconhecer melhor.
Há alguns meses namorava um enfermeiro bastante atrevido, como lembrava constrangido com o alvoroço sorrateiro de suas visitas. Os sorrisos se encontravam nos corredores, e os olhares rodopiavam juntos, mas separados, muitas vezes por leitos e implicações morais. Repugnante, repudiava calado. E assim é a vida, gostava de lembrar. Com uma ponta do pé, afundou o cigarro de vez, pôs as duas mãos dentro do jaleco e sorriu uma quarta e última vez enquanto pensava nas próximas rondas pelo Hospital.
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