6 de novembro de 2016

Estábulo clandestino

Eu fecho tudo. Conversas fiadas, gracejos tolos, portas encostadas e guilhotinas. E sento vil com acentos e pontos finais. Eu abro tudo também. Portões imperiais, uma flor despetalada e botões de blusa de cetim. Eu subo os muros da escola e deixo meus pais preocupados. Eu escancaro na cara da modéstia um sorriso palhaço em um instante amargo da vida. Para que não reste dúvida eu sou eu mesmo. O próprio. Não me perturbe.

Estou dividido.

Há em uma, três ou cinco vidas.
Estou perplexo com quem me prometeu escolha. Não tive. Não tive certezas. Só rabiscos, ocos e lentos. Gravíssimos socorros, ecos afogados. E saltei por essas agonias, preenchendo os buracos que lá surgiam, alegremente. Tolo eu fui. E cheio de vida.

Outra vida me pertence. Essa coisa que não é minha. Eu busquei nos lábios de moça prometida, nos adultérios da prosa, uma garantia. Só dúvida. Só dúvida. E dívida.

Outra e mais outra até não sobrar nenhuma das vidas que vivi.
Sabe quem eu sou? Mil e duzentos e vinte e sete constelações em apenas duas tonalidades. Três mil gravuras ensolaradas na cortina da sala. Um castiçal azul-marinho sem velas. Uma fileira de Marias. Eu sou o caos que o vento carrega nas erupções noturnas, eu sou o distúrbio no fluxo. Eu a faço cair e levantar sem tocar o chão, sem lhe dar as mãos. Eu sou o peso nas costas e as alças do mundo. Eu, o vasto e miúdo.

Estou contente agora. Ser algo me foi ordenado. Se tenho algum conselho? Nada de bulas ou peripécias. Os maiores trapezistas que conheci nunca saltaram. Se tenho outro conselho? O que achas que sou, uma locomotiva ou um jornaleiro? Honestamente, o que achas que sou? Que lhe darei algo que eu mesmo tive que buscar?

Pegue um espelho. Está pensando o que me ocorre agora como pensamento, mas nas falas se reproduz desordeiro? O que vê? É isso mesmo. Um indagador cretino contracenando com seu reflexo. Eu nunca fui bom com finais. E me ocorre agora, só agora, só agora... 

3 comentários:

  1. Oi Adson! Tudo bem?
    Texto bacana, nunca tinha lido nada escrito por vc e gostei. Parabéns, ficou muito bom mesmo! Bj

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  2. Olá, gostei bastante do seu texto, com certeza está no caminhi certo! Um beijo.

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  3. "Os maiores trapezistas que conheci nunca saltaram." Excelente frase.
    Não precisa ser trapezista para os saltos da vida serem grandes.
    Muito bom seu texto.

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