16 de maio de 2011

Ferrovia


Os prédios estão adormecidos na varanda de um condomínio vizinho. Gritos são abafados pelo sonífero manifesto de um novo dia. E aquele ligeiro olhar por cima da poeira, enchendo os vagões de esperança e de novos trilhos.
Meu canto não encanta, nem meu soluço corta o silêncio plantado naquela tarde. Dói, pois sei o que vai acontecer. Vai retirar-se do altar que criara para vê-la desejosa em sua coroa, para nunca mais alegrar-me com a sombra dos teus braços derretendo no calor do meu rosto.
Estará por aí, andando e sonhando com os próximos passos. Sonhando e acordando, questionando-se quem é. Sentirá por nós, a sentir por mim, quando senti por ti, o que fora privado de compartilhar.
Uma vela na mesa, abastecendo o buraco estreito e escuro que curva-se entre uma xícara de café e um pedaço de pão. Uma palavra repreendida antes de ser concluída, fazendo-a voltar ao confinamento de teorias e pensamentos.
O trem vem partindo em nossa direção, rasgando antigas cartas e fazendo o seu avermelhado e incomum pulso enfrentar uma investida repleta de esperança.
Minha voz não pode mais ser consumida por paixão. Falo como texto decorado ou cena repetida: Adeus.
Uma azul e decorativa bainha para um vestido verde. Um brinco que traz uma sombra minúscula ao seu ombro. Vejo o teu sapato apertar os dedos do pé direito, escondendo-te da dor em troca da graciosidade das mulheres da sua idade.
É dor que não cabe mais em pensamentos, que não suporta ser confundida com palavras civilizadas. Dor que espanta um olhar de ternura, que marca o seu rosto sem perdão.

Sua voz é quase estratégica. Ela diz algo, lembramos de alguma coisa familiar e encontramos graça de tudo.
Permita-me, eu falo. Seguro-a pelo braço, puxando a cadeira para um canto escuro, enquanto um braço desocupado sugere que os olhos sejam fechados. Aproximo-me do seu rosto, e sinto pela última vez que esse é o meu lar. Teus lábios encaixam-se perfeitamente nas curvas dos meus, teu sorriso é percebido antes de tocar-me e assim devoro-te carinhosamente.
E que diga ao tempo, antes de desaparecer e deixar o frio acalmá-la, quem mais assumirá o teu coração?

4 comentários:

  1. "Meu canto não encanta, nem meu soluço corta o silêncio plantado naquela tarde. Dói, pois sei o que vai acontecer. "
    Tudo muito bonito por aqui, estou seguindo!
    Um beijo.

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  2. Consegui contemplar tudo por dentro, de uma forma singular e profunda. Passo a seguir o seu espaço.

    Um beijo, Anthony.

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  3. Uma construção caótica. Sucessão de imagens incontornáveis. O amor de um humano que não sabe o que foi e nem o que será. Mas que vive e vê de dentro e fora. Que está sendo na medida em que lembra o futuro e projeta o passado.

    Meu pai se chamava Antonio. Busquei todas as variações do nome dele para criar um heterônimo, para ressuscitá-lo em mim. Lembro bem de ter cogitado o "Anthony". Não o fiz. Fico feliz, porém, por tê-lo visto aqui. Melhor do que eu planejava e do que estava ao meu alcance, pois esta voz não está gravada nas minhas experiências. Mais do que um resultado, pra mim é uma soma. E é isto que procuro em arte.

    Ótimo texto!

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  4. "Teus lábios encaixam-se perfeitamente nas curvas dos meus, teu sorriso é percebido antes de tocar-me e assim devoro-te carinhosamente."
    Eu posso dizer que você é o ser mais lindo que eu já encontrei.

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