27 de maio de 2011

Xadrez primitivo


O mais delicioso da vida era me dedicar aos livros e aos costumes finos e brandos dos meus parentes. Aprendi todos os gestos de bondade acalentados por um sorriso amigável e flatulento. No intervalo para meio termo, usamos aquela besteira frágil que disfarça o detalhe sórdido de como chegamos até aqui. Afinal de contas, não é necessário informar quantos corpos deixamos pra trás, quando corremos por cima deles, deixando-os como palha seca num dia de sol. 
Teve uma vez, se me lembro bem, que a pele pesou por cima das ataduras. E se você tem uma cena de crime primária, não custa nada transformá-la numa cena secundária. Sair com a pele tão escassa, parecendo um peixe sem sua escama ou um amante sem sua máscara, não era primário e nem fecundo, era apenas selvagem e amador. 
Observando o que acontecia atrás das muretas, pelo bem de todos, era o que ele fazia. Falando em todos, éramos quatro, falando e desorientando alguns bêbados. Já lavei aquela rua da podridão que exalava da barba imunda dos velhos mendigos. Isso fazia da noite um esgoto a céu aberto.
Nunca gostei dos garotos melindrados da rua central. Entre o cruzamento das latas de lixo e das árvores mortas, lá eles moram. Todos os inúteis com cheiro forte de gengibre e rum. Sua juventude é, de fato, algo para os mais velhos, eles pensam. Pra mim, eles só ocupam espaço.
Enquanto era dia, eu estava contido no "Senhor! Senhora!"
Mas na hora do horror, era uma boa hora. Corto? Corta!
Nunca gostei do sabor do sangue, pois era mais uma propagação da natureza, um genuíno gesto de violência. Sangue era feito para manchar a blusa, avermelhar a visão, ser jogado no rosto, ou talvez, quem sabe, no banho. Ah, o sangue secando na pele, como se fosse um varal de cordas assimétricas num penhasco incrustado entre o sol e uma bacia de lavandas.  
Houve época de estupro voluntário. Solícita escuridão que usávamos na tentativa de realçar a maquiagem podre de moças que chegavam da noitada. Voluntarias da imaginação alheia. Bem, se olhar pra mim e atingir o nível de admiração, eu piso primeiro e corto a minha parte do bolo para dividir com os meus irmãozinhos.
Todo mundo que apanha é teimoso por natureza. Nascia, mas não era pra nascer, ele pensava. Crescia, e ele não permitiria tanto. Éramos quatro no sábio espetáculo carnívoro, aplaudindo a ambientação e o elenco principal. Um teatro satisfatório e particular que mantínhamos com um bom sorriso no rosto.

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