Vísceras expostas contra o próximo inverno, doravante, impetuoso e lilás, como as púrpuras que aparecem às vezes no céu.
O frio dessa cidade dura mais que a calmaria dos seus rebanhos e devaneios temporais. Às vezes frio, até um rosto surgir por cima das diretrizes de cada colina. As paredes sempre claras, como o meu corpo pincelado na próxima folha, como a saliva que escorre entre os seus dedos para facilitar um novo capítulo da minha história.
O pé desloca a poeira para debaixo da cama. E a língua briga com o pequeno espaço destinado à ela. Acho que este é um círculo vicioso, este sem apresso retrocesso de atos. Ando corroendo o tempo com histórias virtuosas e sábias, com palavras menores que as próprias linhas, como nomes de quem será quem, que por pouco seria alguém digno de respeito.
Nasci a cerca de duas horas daqui. Fizeram questão de dizer que a alegria escorria no rosto de Deus, enquanto o meu pai biológico se enchia de tantos fluídos, duma liquidez sagaz. Não presenciou os olhos fechados, nem o meu pequeno rosto colado em seu peito. Apenas sacudiu a cabeça e foi bater pedra e vento entre os pés e as mãos.
Eu amei naquele ponto, marcando alguns centímetros do chão.
Olhei para ela, ainda vejo-a em minhas lembranças, ou quando penso sobre as memórias partidas de cada partida involuntária. O frio tem esse misterioso atrito que entra pela janela, criando uma neblina e tirando de lá todos os demônios, fantasmas e boas recordações que deixamos lá por ser mais conveniente.
Voltando ao chão, penso ainda naquele dia.
Estávamos perto de gestos amigáveis e sorrisos infantis, quando passamos pela próxima casa, aquela com árvores cobrindo as janelas quebradas de toda uma vizinhança morta, de cortinas brancas, estranhamente mais seguras do tempo. Voltei aos olhos mais quebrados e fundos do mundo, toquei-a no ombro, ela desceu, como se cada osso do seu corpo fosse deslizando pelo peso da minha mão. Um espasmo tomou o canto da boca, fiz a descer ainda mais.
Dessa vez fui de encontro ao chão, caindo de tanta cegueira por vê-la despir um sonho e admitir com tanto gracejo uma realidade. Ela, derradeira, escapou da queda, mais ainda assim, caiu. Rimos de um fato, caímos em nós mesmos.
Foi assim que aconteceu. Contra o jardim de plantas mortas, vendo a luz refletir os olhos mais puros e satisfeitos do mundo, senti a aproximação como quem sente o calor do sol num inverno. Ela solta então um som angustiante, como se a tivesse tirado da vida ou a vida a tivesse tirado o prazer daquela noite. Ambos ali, apaixonados, sabendo as incertezas e caminhos que a vida traria, aceitando uma noite como um resto de nossas vidas.
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